“…é necessário que recordemos que ondas migratórias sempre fizeram parte do povo haitiano. Tanto que se diz que haitianos e haitianas vivem uma constante e permanente diáspora.”
A declaração é do Revdo.Luiz Carlos Gabas, que atua junto à comunidade haitiana na região de Cascavel, cidade do oeste do Paraná. Para esse ministro anglicano é necessário recordar que ondas migratórias sempre fizeram parte do povo haitiano e, talvez, haja mais homens e mulheres haitianos fora do que no próprio país.
Revdo.Gabas entende que as motivações para esse êxodo são diversas: catástrofes naturais, extrema pobreza, questões internas, políticas, sociais, como é comum às migrações não só do povo haitiano, mas de outros povos. O Brasil, por exemplo, conta ele, recebeu o primeiro grupo migratório em 2010, logo após o terremoto que ceifou a vida de mais de 500 mil pessoas. Entraram no Brasil pelo Acre, estabeleceram-se na cidade de Rio e Branco e depois se deslocaram para diferentes localidades em todo o país.
Em 2012 os primeiros haitianos começaram a chegar a Cascavel. Foram 40 homens que vieram para o trabalho da construção civil, mais especificamente para o trabalho de ampliação de uma universidade local da cidade”, relata o sacerdote anglicano.
Depois, uma rede de supermercados foi em busca desse grupo para o trabalho em suas lojas. Depois vieram mais e mais pessoas atraídas pela construção civil, além da oferta surgida nos frigoríficos do município. Hoje são aproximadamente mais de 6 mil residentes na cidade de Cascavel, estima ele.
O acolhimento da igreja anglicana
Revdo. Gabas pastoreia a Paróquia Anglicana da Ascenção e São Lucas em Cascavel e desenvolve constante ações de apoio aos imigrantes. “Como igreja, nos sentimos desafiados a fazer alguma coisa por esses nossos irmãos e irmãs migrantes. De imediato, logicamente, o socorro em termos de alimentação, vestuário, de móveis, moradia, saúde, educação. Mas no transcorrer do tempo surgiram outras demandas, mais complicadas e no campo dos direitos humanos: enfrentamento de xenofobia, de preconceito, de questões trabalhistas. E a igreja não se omitiu em colocar-se em defesa desses nossos irmãos e irmãs.
Nós também entendemos que era necessário ajudá-los a se organizar em associação para que eles fossem os agentes da luta por direitos.” Assim, uma Associação foi pensada para ser instrumento de unidade entre o povo haitiano, para facilitar a comunicação com o executivo, legislativo e judiciário além de outras organizações da sociedade civil, como universidades. Facilitou a comunicação e as relações com a UNIOESTE, tendo ocorrido avanços, como a possibilidade do reconhecimento dos diplomados e diplomadas no Haiti e a tradução gratuita dos documentos. Houve também uma possibilidade de proximidade com a Unila, que desenvolveu um grande trabalho de pesquisa na cidade, do qual a igreja anglicana participou. Dessa ação resultou o material Diáspora haitiana.
Quanto à ação da igreja anglicana, Revdo. Gabas declara: Somos uma igreja pequena, limitada, pobre, mas ela vai cumprindo sua missão. Mesmo sem grandes estruturas nem recursos a gente vai trabalhando, dentro dos nossos limites, tentando fazer alguma coisa por essas pessoas, nossos irmãos e nossas irmãs.
Um haitiano em Cascavel
O jovem Joseph Hoston Bijou é um desses imigrantes. Anglicano e ministro leigo em sua comunidade de origem, ele relata um pouco de sua vida e experiências na entrevista a seguir.
Conte-nos um pouco sobre você. Quem é Hoston Bijou?
Sou Joseph Hoston Bijou, haitiano, nascido em uma família de cinco (5) filhos, incluindo duas (2) meninas e três (3) meninos, sou o quarto. Sábio, dinâmico, jovial, ami
go de todos, afável, quer tudo arrumado, sempre pronto para ajudar são basicamente algumas das minhas qualidades. Nasci em uma família cristã, membro ativo da Igreja Episcopal do Haiti, Comunhão Anglicana. Meu pai era ministro em uma missão há mais de 30 anos (Santo André, onde recebi o sacramento do batismo com a idade de 15 meses). Esta missão está ligada à Paróquia de São Matias, onde meu pai foi maestro titular do Coro Paroquial, por volta dos 18 anos. Desde a infância, papai integrou a todos nós nas atividades da igreja: coral, escuteiro, acólito, associação juvenil e principalmente comitês de evangelização.
E o que mais te motivava na vida comunitária?
Em 2002 recebi membro do corpo
de acólitos e em 2006 do Coro Paroquial. Passei por todas as etapas das comissões das duas entidades jovens da Paróquia de São Matias, de delegado a presidente e de porta-voz a maestro. Estive ativamente envolvido em todas as entidades juvenis, o que me tornou um dos jovens mais influentes e ativos da paróquia. Por mais de 20 anos, tenho sentido um amor incondicional pelo sacerdócio na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, que foi o sonho mais selvagem do meu pai, que nunca deixou de me encorajar todos os dias para que o sonho se tornasse realidade. Ele estava trabalhando muito para nós, e, infelizmente, por um motivo ou outro ele não está lá e ninguém sabe onde está. Cultivo a ideia dia após dia e até agora estou pronto para responder afirmativamente a esse chamado para servir a Deus como um sacerdote em sua santa Igreja, a noiva de nosso Senhor Jesus Cristo. Em agosto de 2016, dirigi uma correspondência à Comissão Diocesana para o Ministério da Igreja Episcopal do Haiti para explicar minha intenção, como me sinto, meus sentimentos de abraçar o Santo Ministério na Igreja Episcopal. Eu ainda estava em espera devido às dificuldades que a Diocese do Haiti estava enfrentando naquele momento. Sempre me mantive fiel aos meus compromissos de batismo porque, em nosso jeito cristão, “Somos o sal da terra, a luz do mundo”. Fui muito influente em quase 10 paróquias da Diocese pela minha liderança, meu dinamismo e meu senso de responsabilidade.
Quando e como você decidiu deixar seu país?
Eu tinha concluído os primeiros dois anos em Engenharia e novas tecnologias e o primeiro ano em Ciências da educação em duas universidades no Haiti. Sempre fui apoiado por minha família e reverendos amigos como Rev. Padre Jean Fils CHERY, Rev. Padre Frederic MENELAS, Rev. Padre Joïs Gourse CELESTIN, Rev. Père Guimond PIERRE LOUIS, Rev. Padre Michelet JACOB e a Reverenda Guilène FIEFIE, para citar apenas essas pessoas. Tendo percebido que o futuro de um jovem no Haiti é incerto devido à má governança dos líderes haitianos, em 2019, meu amigo Wilky Fontus e eu decidimos deixar o Haiti, com destino à Guiana Francesa, para fazer um estudo nas administrações públicas de lá para um dia regressar ao nosso país e colocar as nossas competências ao serviço do país. Chegando lá, infelizmente as coisas correram mal, o que nos levou ao Suriname, onde passamos quase 8 meses. Pesquisamos na internet por uma comunidade anglicana, mas nunca encontramos uma.
E a chegada de vocês ao Brasil?
Em fevereiro de 2020, saímos do Suriname para nos instalarmos no Brasil por via terrestre, quase 40 horas de viagem em carro de transporte público. Foi muito difícil, mas Deus não nos deixou sozinhos. Ele nos deu coragem para enfrentar todos os perigos e superar todas as provações. Em tempos difíceis, sempre repeti estas frases que o Reverendo Frederic MENELAS me ensinou: “A vontade de Deus nunca me colocará onde a Sua graça não possa me proteger” e o versículo 8 do Salmo 34: “O anjo do Senhor acampa-se ao redor daqueles que o temem, e ele os resgata do perigo. O que me dá força e coragem. Chegamos em Roraima (Boa vista) e passamos quase 18 dias lá para regularização de documentos. Ainda foram dias muito difíceis. Em 10 dias, acabamos nos inscrevendo no CONARE como refugiados e saímos com um dos documentos mais importantes, o CPF. No dia 28 de fevereiro de 2020, desembarcamos em São Paulo onde encontrei pelo Facebook o Reverendo Padre Sergio FERREIRA e a Reverenda Carmen Etel Alves Gomes que me indicou o bispo coadjutor de São Paulo, Cézar Fernandez Alves, um verdadeiro amigo com quem conversei muito, um símbolo de paz, união e amor. Após uma (1) semana da minha chegada em São Paulo, o governo decidiu fechar o estado por causa da pandemia. Ainda tempos difíceis, quase 6 meses de muito trabalho, mas Deus estava cuidando de nós como havia prometido.
E como foi a sua recepção pela comunidade anglicana em São Paulo?
Procurando a comunidade anglicana mais próxima de mim, o Bispo Cézar me encaminhou ao canal do youtube da Paróquia Santíssima Trindade, onde me encontrei com o Rev. Arthur e o Rev. Ricardo, que era seminarista na época, sempre através das redes sociais. Participei de cultos no Youtube e Facebook todos os domingos, ao mesmo tempo em que sempre busquei me informar bem sobre a IEAB e saber sobre a possibilidade para mim realizar meu sonho mais querido aqui no Brasil. Depois de muita troca de ideias com o Bispo Cezar, o Rev. Arthur e o diácono Rev. Ricardo, finalmente conheci todas as condições, que não são diferentes da Igreja Episcopal do Haiti. Lá comecei a encontrar minha grande família da Comunhão Anglicana e estou em boas mãos.
Quando decidiram deixar São Paulo e partir para o Paraná?
Em setembro de 2020, por motivos de trabalho, saí de São Paulo para ir a Cafelândia para uma entrevista em uma empresa agroalimentar. Antes de vir, contei ao Bispo Cézar que estava muito preocupado com a situação. Ele não queria que eu ficasse sozinho ali, me encaminhou para o reverendo padre Luiz Carlos Gabas. Visitando a página da Paróquia da Ascensão no Facebook, encontrei o número do Padre Gabas e o contatei imediatamente, ele me atendeu rapidamente. Conversamos muito até que o Padre Gabas visitou pela primeira vez minha casa em Cafelândia. Desde a primeira vez que o padre Luiz Carlos Gabas e eu conversamos nas redes sociais, encontrei nele um verdadeiro pai, um verdadeiro acompanhante. Ele me visitou várias vezes em Cafelândia antes de se mudar para Cascavel, mais perto da Paroquia para que eu pudesse me integrar mais e aprender mais com a IEAB do que me amo. A visita que mais me retém é a celebração do Natal, porque havia perdido muito esse evento em minha vida cristã. Além disso, o Rev. Gabas inspirou-me muito e mais uma vez renova em mim a vontade de ser pastor, como ele com a sua liderança, o seu amor na hora de ajudar alguém , a sua disponibilidade para ajudar os outros, o seu acolhimento caloroso e o seu senso de responsabilidade. Depois de lhe entregar a carta que a Diocese do Haiti lhe enviou sobre nós, estou oficialmente vinculado à paróquia de ascensão de Cascavel, DAPAR / IEAB administrada pelo Rev. Gabas.
Como tem sido os teus dias vivendo em Cafelândia-PR?
Estou muito feliz, me sinto em casa no Haiti. A única coisa que sinto falta é minha família biológica. Por fim, entendo que nada é fruto do acaso porque tudo isso é feito pela vontade de Deus. Aqui no paraná já tive um certificado de conclusão do curso de manutenção de computadores e outro de informática básica, estou apenas começando. Agradeço a Deus por todas as coisas belas que Ele já começou em mim, por todas as pessoas que Ele colocou no meu caminho que considero anjos na terra: o Bispo Naudal Alves Gomes (Primaz da IEAB), O Bispo Cezar Fernandes Alves (Bispo de São Paulo), Reverendo Arthur Cavalcante e o Reverendo Ricardo da DASP, e de uma forma muito especial o Reverendo Glauber Jânio et o Reverendo Luiz Carlos Gabas.
Agradeço também à minha família no Haiti, aos meus bons amigos sacerdotes da diocese do Haiti e a todas as outras pessoas que me estenderam as mãos em todos os momentos difíceis.
Qual o seu maior sonho ?
Meu maior sonho é me tornar um reverendo na Santa Igreja de Deus, Una, Santa, Católica e Apostólica e também um cirurgião-dentista. Tenho a certeza a que estou no caminho certo e também estou bem acompanhado de gente boa, bons homens de Deus. Na paróquia em que estou, participarei ativamente e colocarei todos os meus conhecimentos para o desenvolvimento do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo e o bem estar da Paróquia como os batizados e cuja missão se encontra no Evangelho Mateus, capítulo 28 o versículo 19 “Ide por todas as nações e fazei discípulos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” Que Deus complete em mim o que já começou e renove a minha vontade todos os dias.